Foi aprovada pela maioria do parlamento sul-africano uma moção que determina a expropriação de terras nas mãos de brancos, sem indemnização, para que as mesmas sejam depois redistribuídas a negros pobres, que delas necessitam e tanto anseiam, desde 1994. E está ressuscitado o fantasma do Zimbabwe ou talvez mais.
Esta moção, de iniciativa do ultra-esquerdista EFF de Julius Malema, surge num momento em que o ANC ainda mal refeito do impeachment contra Jacob Zuma, tudo faz para assegurar que em 2019, não perde a sua maioria absoluta no parlamento, como as últimas eleições municipais lhe fizeram antever. Mas também, esta moção do EFF, vem na exacta medida dos apetite voraz de um ANC clientelista e com muitos mais agendas por realizar, após a captura do aparelho do Estado e do sector mineiro do país, que aliás, foi a rampa de lançamento que permitiu Ramaphosa ser o próspero milionário que hoje é.
Concebido com um acto legítimos de affirmative-action, ele tem como base legal, reparação histórica do Natives Land Act de 1913, que na sua concepção definiu as bases do que viria a ser o Apartheid em 1948 e estabeleceu que apenas 7% de terra arável seria atribuída aos negros, deixando o resto nas mãos dos brancos. Esta lei estabeleceu concomitantemente reservas exclusivamente para negros – os futuros bantustões – as quais não poderiam ser vendidas a brancos e vice-versa.
Em boa verdade, este acto segregacionista foi o affirmative-action dos Afrikaaners que lhe conferiu a pujança económica que ainda hoje exibem na sociedade sul-africana. Estando agora o ANC a usar ironicamente do mesmo expediente político para atingir idênticos fins. Em boa verdade, a África do Sul sempre foi um caso peculiar do capital intensivo baseado em latifúndios familiares e não em corporações.
Outro aspecto que resalta desta moção, é a particularidade de ser inconstitucional, num país, onde o Poder Judicial, ainda mantém relativa independência do Poder Político e Económico. Espera-se pois, que seja deste, a última palavra, para desenrolar este novelo que Ramaphosa teceu com Malema.
Com efeito, O artigo 25º da Constituição da África do Sul, sobre a Propriedade, diz no seu número um que “ninguém deve ser privado da sua propriedade excepto nos termos da aplicação geral da lei e nenhuma lei deve permitir expropriação arbitrária de propriedade”, o que de “per se” já é o suficiente para se falar numa refundação da nova República surgida após o Apartheid. Ressuscitar ódios. E criar problemas sócio-económicos aos seus vizinhos da SADC, como Moçambique, que ainda depende fortemente dos farmers boers para manter os seus mercados reabastecedores em funcionamento, sobretudo na cidade de Maputo.
Não sou daqueles que aceita que o Estado de Direito deva ser “fintado” algumas vezes, para dar lugar a demagogia em defesa do social. Como é o caso de um conhecido articulista moçambicano que defende ingenuamente uma solução “ 50/50 à Albie Sachs”, porque se incorre no “caso precedente”, aspecto que para os que estão familiarizados com jurisprudência da escola anglo-saxónica certamente relevarão.
Não me parece que os investidores nacionais e estrangeiros na África do Sul viessem mais arriscar o seu dinheiro num mercado tão instável. Aliás, não foi sem supresas que o pró-Afrikaaner Afrikom iniciou de imediato uma campanha internacional para alertar para os riscos desta nova situação criada pela moção do EFF.
E a seu favor tem o histórico banhado em sangue que a ala mais radical do ANC promoveu, quando então se revia no então seu líder, Julius Malema, quando este defendia abertamente que um “boer bom era um boer morto”, no que resultou no início de uma campanha de expropriação e assassinato de farmeiros boers envelhecidos ou simplesmente falidos, que prossegue até hoje.
Nos últimos cinco anos, a África do Sul conheceu a redução do número de farms de 60.000 para as actuais 20 à 15.000, com a perda ou abandono dos meios de produção, mas que se mantém ainda em pouzzio até aos nossos dias, por falta de know-how por parte de seus novos ocupantes, como é o caso de muitas farms nas cercanias de Nelspruit e do Kwazulu-Natal, só para citar exemplos que nos são mais próximos.
E nada indica que os radicais do ANC e do EFF não continuarão a suportar os esforços para “encorajar” os farmeiros visados por esta moção, a entregar não somente as terras, mas inclusivamente a deixarem os bens nas mãos dos novos ocupantes, pese embora Ramaphosa tenha declarado que a expropriação se fará de acordo com a Lei e nunca com ocupação selvagem das propriedades. Isto porque Malema, astuto que é, aplicará a receita habitual, instigando o assassinato dos mais renitentes farmeiros boers e patrocinará judicialmente, os que forem acusados, resultando na sua subsequente absolvição, por atenuantes que na altura se saberá. Todo o sistema de propaganda nos órgãos de comunicação social fiéis ao ANC e EFF estão prontos para exercerem o seu papel de advogados deste processo de “reparação histórica”.
Uma “reparação histórica” que é de todo questionável, por se basear na côr da pele. Assumindo-se assim, que o latifundiário negro, que se confartou com a propriedade de muitos outros negros após 1994, não estará sujeito às agruras do processo. É no mínimo caricato num Estado que escolheu a bandeira arco-íris, como símbolo da união, em igualdade de direitos e deveres, de todos as raças e tribos sul-africanas.
Por seu turno, a expropriação sem indemnização, leva-nos para os antípodas de um Estado fascista da América Latina na década de 1950, que não respeita as regras financeiras mundiais, das quais, aquela potência económica de África é fiel signatária.
Então, em que é que ficamos?
Parece vamos ficar assim até às eleições de 2019, mais coisa, menos coisa, aplicando a mesma fórmula de ”racket político” que a ZANU-PF administrou aos farmeiros brancos, quando se apercebeu que era destes a fonte de financiamento da oposição que quase a derrubou nas urnas.
Com toda a certeza, as primeiras expropriações de terras deverão ocorrer em áreas que tendem votar regularmente na oposição, nomeadamente, na próspera região vitivinícola do Cabo Ocidental e na região do Karroo, mais a norte, feudo dos afrikaaners mais saudosistas e que se batem pela independência da região de Orânia, estado-fictício, cujas terras foram adquiridas e parceladas para preservar a tradição boer.
Curiosamente, em grande parte destas áreas, os habitantes brancos já lá estão há perto de 400 anos. Enquanto negros, asiáticos e mestiços a eles se juntaram há menos de 150 anos, para colonizar novas áreas semi-desérticas e muitas vezes desabitadas. É muito difícil qualificar que tipo de “reparação histórica” teríamos aqui ao abrigo do Natives Land Act de 1913.
A conclusão já se antevê óbvia, diria mesmo, profética. Os novos ocupantes serão a ponte para os gatos gordos do ANC e do EFF acrescentem ao seu pecúlio, o título de novos latifundiários sul-africanos, que tal como os anteriores proprietários envelhecidos e falidos, serão apenas uma nova classe média-alta de prósperos rendeiros negros, como aliás, vimos também acontecer no Zimbabwe, cuja particularidade é nunca disporem de know-how para operar os meios de produção. O que também não de admirar, visto tratar-se essencialmente de lobbystas de salão.
Por isso, é quase certo que tentarão arrendar essas mesmas terras aos anteriores proprietários, na condição destes lhes devolverem a produtividade. Dificilmente terão sucesso, nem com chorudos pacotes indemnizatórios pagos com envelopes debaixo da mesa. O mais provável é que assistamos ao êxodo em definitivo da população Afrikaaner para outras paragens do planeta, ou mesmo até, uma espécie de insurreição boer, igualmente fadada ao fracasso, mas que resultaria na destruição da base económica da África do Sul.
O Santo Graal Chinês
Nada que constitua grande preocupação para os proponentes da moção, para quem a China e Índia, tal como no Zimbabwe, são a árvore das patacas onde esperam assentar nova faceta do affirmative-action, mediante “joint-ventures” e similares. No fundo, pouco ou nada difere dos acordos mercantilistas estabelecidos entre os primeiros colonizadores europeus do continente e alguns regulados em troca de missangas e escravos.
Por isso, se torna interessante destacar que, um pouco por toda a África, os governantes tendem a convergir para o modelo chinês de gestão fundiária, em muitos aspectos. O que agrada bastante os políticos em Beijing, pois está em linha com a sua estratégia de conquista de um espaço-vital para sua própria existência como nação milenar.
É importante salientar que o socialismo de mercado na China impõe que a terra seja propriedade do Governo (central ou provincial), mas prevalece o princípio da inviolabilidade do direito de uso e aproveitamento da terra, ou seja, uma situação muito próxima à da inviolabilidade da propriedade privada que estabelece o artigo 25º da actual Constituição da África do Sul ou seja, em caso de expropriação determinada por circunstâncias extremas, o Estado chinês deve, obrigatoriamente, indemnizar o respectivo locatário. Ramaphosa, ao decretar o fim dos latifúndios boers, deve ter certamente consultado exaustivamente o Oráculo chinês.
Pois como noticia a France-Press, nunca como agora, houve tanto apetite voraz da China na aquisição ou aluguer por longo prazo de terras aráveis no Terceiro Mundo, mas também na Austrália, EUA e até na Europa. Com perto de 1.400 milhões de habitantes, cerca de um quinto da população mundial, e com menos de 10% de terra arável do planeta, a China procura a todo custo assegurar no exterior, o suprimento das suas necessidades alimentares.
Com perto de 92 mil milhões de dólares investidos em projectos agrícolas fora da China desde 2012, Beijing tornou-se num parceiro apetecível das elites rendeiras da SADC particularmente de Angola, Moçambique e mais recentemente o Zimbabwe. A que se juntaram recentemente a Índia e o Vietname, que com a China elevam para os dois quintos de população mundial em risco de grave insegurança alimentar.
Por isso, não seria de espantar que a partir de Agosto, novas parcerias fundiárias entre os comrades do ANC e EFF nascessem do outro lado do planeta. Pois nem só de feijão-boer vivem os novos latifundiários da SADC.
Por Ricardo Santos
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