Passam 50 anos desde o assassinato de Amílcar Cabral, líder da luta armada de libertação da Guiné-Bissau e de Cabo Verde. "É uma figura incontornável".
Amílcar Lopes Cabral foi morto a tiro, em Conacri, na
noite de 20 de janeiro de 1973, poucos meses antes da proclamação unilateral da
independência da Guiné-Bissau. Volvidos 50 anos, o então líder do Partido
Africano para a Independência da Guiné-Bissau e Cabo Verde (PAIGC) continua a
ser evocado em vários quadrantes como figura carismática, herói e mártir, mas
também como um teórico de um pensamento político bastante complexo, que
defendeu a educação como um importante fator de desenvolvimento.
O historiador guineense Julião Soares Sousa diz que Amílcar
Cabral tem sido uma figura transversal do século XX, que deixou ensinamentos
valiosos não só no contexto da luta contra a ditadura e o
fascismo. "Há publicações a saírem quase diariamente sobre essa
figura incontornável do nacionalismo guineense e cabo-verdiano, mas também
africano e mundial."
Amílcar Cabral "foi um homem real, que nunca aceitou o
rótulo de herói, lembrou o historiador durante num colóquio em Lisboa. A tese
de doutoramento de Julião Soares Sousa versou sobre a vida e morte de Amílcar
Cabral. "Ele tinha uma aversão muito grande ao culto de
personalidade", referiu na sua comunicação. "E era implacável contra
aqueles que tinham medo de perder o poder".
Assassinato por esclarecer
O jornalista português José Pedro Castanheira, que
investigou e escreveu o livro "Quem Mandou Matar Amílcar Cabral?",
questiona: "Meio século depois, ainda fará sentido manter esse ponto de
interrogação?"
Castanheira elencou quatro hipóteses plausíveis na sua
reportagem de 1993, mas, em declarações à DW, adianta existirem hoje novos
dados resultantes de vários trabalhos de investigação que procuram esclarecer o
mistério e "permitem ter, eventualmente, uma luz mais clara sobre os
principais responsáveis pelo assassinato de Amílcar Cabral".
"Limitei-me a fazer o meu trabalho de investigação
jornalística, mas outros, sobretudo na Guiné-Bissau, poderão eventualmente
chegar mais longe e porventura tirar conclusões."
Cabral, "um agente de mudança"
O assassinato de Amílcar Cabral é, além do Massacre de
Wiriyamu, um dos acontecimentos "tectónicos" na história de
Portugal que impulsionaram a fragmentação do Império colonial, comenta o
historiador moçambicano Mustafah Dhada.
O professor na Universidade da Califórnia (EUA), que trouxe à luz o massacre de Wiriyamu ocorrido em 1972 na província moçambicana de Tete (Moçambique), também escreveu sobre Cabral, um pensador africano que considera "verdadeiramente enorme", "puro" e de uma "profundidade autêntica".
"Eu penso que não devemos fazer uma comparação entre
Amílcar Lopes Cabral e os outros pensadores africanos ou de fora do
[continente]. Era profundamente contextualizado no seu tempo e vivia uma
vida intensiva e que analisava as suas experiências vividas", diz Mustafah
Dhada.
Era com essas inspirações que Amílcar Cabral
"catapultava numa direção de dentro para fora" do seu país,
acrescenta o historiador. "Isso não significa que ele não era atingido por
ideologias e sistemas externos. Essencialmente, Cabral era simplesmente Cabral.
Um homem ordinário que vivia no contexto do seu tempo como agente de
mudança."
Mas era "um homem com falhas, naturalmente, com
fraturas internas, como todos nós temos", diz. Mustafah Dhada foi outro
dos participantes no colóquio internacional "Amílcar Cabral e a História
do Futuro", organizado pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de
Coimbra, no passado fim de semana, em Lisboa.
Cabral esquecido na Guiné-Bissau?
No entanto, na Guiné-Bissau, a figura multifacetada de
Cabral – como engenheiro agrónomo, combatente revolucionário, diplomata e
poeta, reconhecido no plano internacional – é quase ignorada.
De acordo com o investigador guineense Carlos Cardoso,
"há uma espécie de política de esquecimento da memória para apagar figuras
como Cabral", que fazem parte da história do país.
Estudiosos de vários quadrantes, participantes no
referido colóquio, consideram que Cabral "é uma figura histórica
imprescindível", que "deve ser recuperada", não só por ter sido
o símbolo de unidade e luta pela independência da Guiné-Bissau e de Cabo
Verde.
Pedro
Pires, ex-Presidente de Cabo Verde, qualifica Cabral como "lutador,
pensador e homem político", cujo legado deve ser preservado. É o que tenta
fazer a Fundação Amílcar Cabral, sedeada na Cidade da Praia sob a sua direção
desde 1984.
"Temos desenvolvido [um conjunto de] atividades no sentido da recolha, do registo e da conservação de tudo o que há sobre a memória de Amílcar Cabral, mas também de tudo o que existe como documentação e produções dele sobretudo em matéria política e cultural", descreve. "Vamos continuar, mas é uma tarefa que não é fácil porque exige meios."
É baseado no contacto pessoal que teve com Amílcar Cabral no
período da luta armada de libertação contra o colonialismo português que Pedro
Pires se empenhou neste desafio para evocar os feitos do considerado
"pai das independências da Guiné-Bissau e de Cabo Verde", protagonista
e produtor de pensamento político.
"O nosso próximo objetivo é a celebração do centenário
[de nascimento] de Amílcar Cabral [no próximo ano]. Aí, vamos também ter a
necessidade, precisamos da participação dos estudiosos de Amílcar Cabral e
também dos seus admiradores para que se faça uma comemoração condigna",
apela.
Muito ainda falta descobrir sobre a sua personalidade e as
suas motivações, refere Pedro Pires, em entrevista à DW em Lisboa. "De um
lado, a sua visão do mundo e, do outro, a sua vontade de participar na
materialização dessa visão", explica.
"Amílcar Cabral é hoje uma das principais referências
incómodas em África para países que querem construir uma sociedade
diferente", afirmou Pedro Pires no colóquio.
Por razões mais que fundamentadas, o académico Julião Sousa,
da Universidade de Coimbra, sublinha ser importante continuar a estudar Amílcar
Cabral, até porque – acrescenta – ainda há várias dimensões atuais da sua tese
por aprofundar.
O historiador quer também que o legado de Amílcar Cabral
seja estudado nas escolas, "para que as crianças saibam quem foi essa
figura que contribuiu para a independência da Guiné-Bissau e de Cabo
Verde".
"Isso devia ser um motivo de orgulho para nós
guineenses e cabo-verdianos", sublinha.
Sem comentários:
Enviar um comentário